20 de dezembro de 2015

O Menino Jesus do Morro


A estrela despencou do céu
Anunciando a chegada do menino
Que o deus Destino fez vingar
No ventre impuro de Maria do morro
Maria do povo

Nasceu o filho do Homem
De José sem mãe
Zé sem nome
Zé sem passado
Zé ninguém

Nasceu transparente
Absorveu toda a cor da noite
Agora tem a cor da noite
O menino com a lua nos olhos

Ninguém veio visitá-lo
O menino nasceu esquecido
E assim lhe escreve o deus Destino:
"Andarás por entre a gente,
Homem invisível,
Fazendo milagres

Que não serão reconhecidos."


Anderson Lopes
Foto: Cristiano de Assis

14 de outubro de 2015

Teu Corpo Mar




Teu corpo mar
Onda e sal
Eu sou o sol
Que em ti se deita manso
Sonso
Dourando cada canto calmamente
Lambendo as tuas partes
Com a sua língua ardente

Teu corpo mar
Brisa
Bruma e areia
Eu sou lua cheia
Que a tua maré agita
Que de amor de mais se agiganta
Para poder te beijar.

Anderson Lopes


4 de agosto de 2015

Saliva




Olhe este corpo
Ele nunca mais será seu
Ele nunca mais será meu
Ele nunca foi inteiramente nosso

Nele ainda há as tuas digitais
E as marcas do amor carnal
Do amor carnívoro
Canibal

Outra virá e apagará as tuas marcas com a língua
Lamberá os teus sinais
Transformará tudo em saliva.

[Anderson Lopes]


12 de julho de 2015

De Preto


Vou de preto
Para disfarçar os excessos
Para encobrir os defeitos
Para estar em contraste
Com este dia branco

Vou de preto
Para que toda a sujeira da vida me atinja
E nunca fique evidente
Vou de preto
Porque eu sou transparente

Vou de preto
Para impor respeito
E carrego nos olhos os meus óculos escuros
Para encarar a falsa luminosidade do mundo
Devidamente protegido.

Anderson Lopes

5 de maio de 2015

Mira


Eu me viro e me reviro
Giro a cabeça
Até ficar oposto a você

Eu me retiro e me estiro
Para além desse mundo
Que você povoou 
E me deixou sozinho

Miro outro alvo
Atiro em outro mundo
Atinjo um novo amor

[Anderson Lopes]

26 de março de 2015

Aquele Quarto





Aquela cama
Que tanto amor acolheu
Aqueles lençóis
Que tantos prazeres cobriram
E descobriram
Aqueles travesseiros
Que tantos segredos sabem
Se eles falassem
Pediriam nossas cabeças de volta
Aquele quarto
Que tanta paixão presenciou
Sente saudade de nós dois...

Anderson Lopes

25 de fevereiro de 2015

Um Coração e Dois Amores

Um coração e dois amores
Um tão igual a mim
O outro tão distante
Um tão real
O outro delirante
Um corpo só e dois desejos
Uma boca sedenta de beijos
Um amor escancarado
E o outro vivido em segredo...

[Anderson Lopes]

27 de janeiro de 2015

Mero Acaso

Sou a contradição entre a razão e o instinto:
Meu lado animal é fato
Meu lado homem é mito

Meus grandes olhos são armas nucleares
Sou homem de poucas palavras
E muitos olhares

Meu tempo é um sujeito errante
Não me julgues pelo agora
Séculos compõem o meu instante

Eu sou um quebra-cabeça das impressões que causo
E cada impressão traz um equívoco
No fim, eu sou um mero acaso...

Anderson Lopes



A Noite



A noite me beija com seu hálito fresco
E me envolve em seu encanto pagão
Negra
Nua
Inebriante cortesã do ébano
A escancarar a vastidão do seu sexo
Por entre as esquinas
 
Pura
Crua
A lua é uma pérola entre os seios
A contemplar sua nudez
 
A noite
Numa sedução que me entontece
Embriagado dela
Eu perco o juízo
A manhã virá me encontrar caído
Sonolento de prazer
 
[Anderson Lopes]
 

Volume Morto



Descobriu-se que não existem sapos
Na lagoa da terra da garoa
Só lixo
E o registro
De povos antigos
Revelados pela seca

Todos os anos de enchentes
Não foram suficientes
Para impedir que o sol
Estancasse a água
Secasse as línguas
Matasse de sede...


[Anderson Lopes]